Lya Luft
Que
qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem pretende um
relacionamento? Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe respondi: aquelas que se
esperaria do melhor amigo. O resto, é claro, seriam os ingredientes da paixão,
que vão além da amizade. Mas a base estaria ali: na confiança, na alegria de
estar junto, no respeito, na admiração. Na tranquilidade. Em não poder imaginar
a vida sem aquela pessoa. Em algo além de todos os nossos limites e desastres.
Talvez
seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é instinto e intuição, mas
uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para
ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria como parceiro de vida quem não
pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais:
são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. Falo daquela pessoa para
quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia ou da
madrugada, e dizer: "Estou mal, preciso de você". E ele ou ela estará
comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou
simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me
reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.
Mais
reservada do que expansiva num primeiro momento, mais para tímida, tive sempre
muitos conhecidos e poucas, mas reais, amizades de verdade, dessas que formam,
com a família, o chão sobre o qual a gente sabe que pode caminhar. Sem elas, eu
provavelmente nem estaria aqui. Falo daquelas amizades para as quais eu sou
apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras, eventuais tristezas, erros e
acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida. Para eles
não sou escritora, muito menos conhecida de público algum: sou gente.
A
amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele mas sem o ônus do ciúme
– o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o
ombro para chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é poder
apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão,
é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação
nenhuma. Amiga é aquela a quem se pode ligar quando a gente está com febre e
não quer sair para pegar as crianças na chuva: a amiga vai, e pega junto com as
dela ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.
Amigo
é aquele a quem a gente recorre quando se angustia demais, e ele chega
confortando, chamando de "minha gatona" mesmo que a gente esteja um
trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde cedo, e não viveria
sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de amigos:
"Tenho meu marido e meus filhos, e isso me basta". O marido morreu,
os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num deserto sem oásis, injuriada como
se o destino tivesse lhe pregado uma peça. Mais de uma vez se queixou, e nunca
tive coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a
vida afetiva. E que amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são
cultivados com... amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem
aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam
nem luz nem espaço nem afeto.
Quando
em certo período o destino havia aparentemente tirado de baixo de mim todos os
tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo, foram amigos, amigas, e
meus filhos, jovens adultos já revelados amigos, que seguraram as pontas. E
eram pontas ásperas aquelas. Aguentei, persisti, e continuei amando a vida, as
pessoas e a mim mesma (como meu amado amigo Erico Veríssimo, "eu me amo
mas não me admiro") o suficiente para não ficar amarga. Pois, além de
acreditar no mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha aqueles amigos. Com
eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas, aprendi solidariedade,
simplicidade, honestidade, e carinho.
Nesta
página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles,
aquelas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo
quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou desatinada, pois às vezes
eu sou tudo isso, ah!, sim. E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a
gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer
malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A
gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador,
deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro amigo é
confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar,
mas sabemos que retorna; ele nos aguenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo,
e nos faz ser melhores: como o verdadeiro amor.
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